David Grossman faz discurso para israelenses e palestinos enlutados
Há muito barulho e comoção diante da nossa cerimônia, mas não esqueçamos que, acima de tudo, esta é uma cerimônia de lembrança e comunhão. O barulho, mesmo que presente, está neste momento mais longe de nós, porque no coração desta noite nos envolve um profundo silêncio: o silêncio do vazio criado pela perda.
A minha família e eu perdemos o Uri na guerra, um homem jovem, doce, inteligente e divertido. Quase doze anos depois, ainda é difícil falar dele em público.
A morte de um ente querido significa, na realidade, também a morte de uma cultura privada, completa, pessoal e única, com a sua própria linguagem especial e o seu próprio segredo, e que nunca mais voltará a existir, e nem haverá nenhuma como esta.
É indescritivelmente doloroso enfrentar esse “não” decisivo. Há momentos em que esse “não” quase absorve todo o “ter” e todo o “sim”. É difícil e cansativo lutar constantemente contra a gravidade da perda.
É difícil separar a memória da dor. Me dói lembrar, mas é ainda mais assustador esquecer. E como é fácil, nesta situação, ceder perante o ódio, a raiva e a vontade de vingança.
Mas percebo que cada vez que a raiva e o ódio me tentam, de imediato sinto que estou perdendo o contato vivo com o meu filho. Alguma coisa está selada. E assim cheguei à minha decisão, fiz a minha escolha. E acho que aqueles que estão aqui esta noite fizeram a mesma escolha.
E sei que dentro da dor há também o fôlego, a criação e o fazer o bem. Essa dor não isola, já que também liga e fortalece. Aqui, mesmo os velhos inimigos, israelenses e palestinos, podem ligar-se uns aos outros para além da dor e mesmo por causa dela.
Já conheci muitas famílias em luto nestes últimos anos e, baseado na minha experiência, lhes disse que, mesmo vivendo em meio à dor, devem lembrar-se que cada membro de suas famílias deve ter permissão para chorar, e da maneira que quiserem, da forma como suas almas disserem.
Ninguém pode dizer a uma outra pessoa como chorar. Isso é válido para uma família nuclear, e o é também para a extensa “família em luto”.
Há um sentimento forte que nos conecta, uma sensação de destino comum, e uma dor que só nós conhecemos, para a qual quase não há palavras, lá fora onde brilha a luz. É por isso que, se a definição de “família em luto” é genuína e honesta, por favor respeitem o nosso caminho. Merece respeito. Não é um caminho fácil, não é óbvio, e não está isento de contradições internas. Mas é a nossa maneira de dar sentido à morte dos nossos entes queridos, e às nossas vidas depois de suas mortes. E é a nossa forma de agir, de fazer, de não desesperar e de não desistir, para que um dia, no futuro, a guerra desapareça e, talvez, cesse por completo, e comecemos a viver, viver uma vida plena e não somente pulando de guerra em guerra, de desastre em desastre.
Nós, israelenses e palestinos, que, nas guerras entre nós, perdemos o mais importante, mais importante que as nossas próprias vidas, estamos condenados a enfrentar a realidade através de uma ferida aberta. Aqueles assim feridos já não podem promover ilusões. Os assim feridos sabem em que medida a vida se compõe de grandes concessões, de um compromisso sem fim.
Acho que a dor nos transforma, aos que estamos aqui esta noite, em pessoas mais realistas. Vemos com clareza, por exemplo, tudo o que diz respeito aos limites do poder, às ilusões que sempre acompanham aquele que sustenta o poder.
E agora somos mais cautelosos, mais do que éramos antes do desastre, e nos enchemos de ódio cada vez que detectamos uma exibição de orgulho vazio, ou slogans de nacionalismo arrogante, ou declarações arbitrárias dos líderes. Somos mais do que cautelosos: somos praticamente alérgicos. Esta semana Israel celebra 70 anos. Espero que possamos comemorar muitos anos mais, e que muitas mais gerações de filhos, netos e bisnetos o façam, vivendo aqui ao lado de um Estado palestino independente, de maneira segura, pacífica e criativa, e o mais importante, em uma serena rotina diária, de boa vizinhança; e sentindo que este é o seu lar.
O que é um lar?
O lar é um lugar cujas paredes, as suas fronteiras, estão definidas e são aceitas; cuja existência é estável, sólida e calma; cujos habitantes conhecem os seus códigos íntimos, cujas relações com os seus vizinhos foram resolvidas. Um lugar que projeta um sentido de futuro.
E nós, os israelenses, mesmo depois de 70 anos – e não importa quantas palavras embebidas em mel patriótico sejam pronunciadas nos próximos dias – ainda não chegamos lá. Ainda não estamos em casa. Israel estabeleceu-se para que o povo judeu, que quase nunca se sentiu em casa em nenhum lugar do mundo, finalmente tivesse um lar. E agora, 70 anos mais tarde, pode ser que a poderosa Israel seja uma fortaleza, mas ainda não é um lar.
A solução para a complexa relação entre israelenses e palestinos pode ser resumida em uma breve fórmula: se os palestinianos não têm um lar, os israelenses também não o terão.
O oposto também é verdadeiro: se Israel não for um lar, a Palestina também não o será.
Um Estado que agirá, não movido por impulsos momentâneos; não em intermináveis convulsões de truques e manipulações; e investigações policiais, obstáculos e saltos acrobáticos. Em suma, desejo que o nosso governo seja menos astuto e mais sábio. É permitido sonhar, não é? Pode-se, também, pode admirar as realizações. Israel merece que lutemos por ela. Também desejo estas coisas para os nossos amigos palestinos: uma vida de independência, liberdade e paz, e a construção de uma nação nova e reformada. E desejo que dentro de 70 anos os nossos netos e bisnetos, tanto palestinos como israelenses, apareçam aqui e cada um cante a versão do seu hino nacional.
Mas há uma frase que poderão cantar juntos, em hebraico e em árabe: “Ser uma nação livre na nossa terra”, e talvez, finalmente, seja uma descrição realista e precisa para ambas as nações.
Artigos Relacionados
Guilherme Cohen, do Judeus Pela Democracia, é o entrevistado do novo episódio do podcast do IBI
13 de fevereiro de 2020
Enquanto o então candidato Jair Bolsonaro falava no auditório da Hebraica do Rio de Janeiro, um grupo de judeus protestava na frente do local. E foi assim que surgiu o coletivo Judeus pela Democracia, que hoje atua fortemente no Rio de Janeiro. A ideia do grupo é unir judeus que apoiam os direitos humanos. Nossa […]

Playlist da semana: Hip Hop Israelense II
30 de outubro de 2019
Curadoria de Richard Sihel

Legislação e Honestidade
25 de julho de 2018
A Declaração de Independência de Israel, conforme escrito no documento solenemente lido por Ben Gurion em 14 de Maio de 1948 na histórica sessão de fundação do Estado, afirma de maneira absolutamente clara e explícita a formação deste como a entidade nacional territorial do povo judeu. O direito desse povo a uma tal prerrogativa é […]
