Israel nas Ruas: Quando a crítica defende o Estado
20 ago 25

Israel nas Ruas: Quando a crítica defende o Estado

Revital Poleg

Revital Poleg

É difícil descrever a magnitude do “Dia da Paralisação Nacional”, realizado em Israel no dia 17 de agosto, exigindo a devolução de todos os reféns e o fim da guerra. Ao longo do dia, ocorreram centenas de pontos de manifestações e protestos em todo o país, dirigidos a diversos públicos. Eles começaram, simbolicamente, às 06h29 – o minuto maldito em que teve início o ataque do Hamas em 7 de outubro de 2023. Centenas de milhares de cidadãos participaram dos protestos, cujo ponto alto foi uma imensa demonstração de solidariedade reunida na Praça dos Reféns naquela noite. 

A sensação de urgência que pulsa em mais de 70% da população, há muitos meses, é imensa e intransigente, e só aumentou desde que se soube que Israel pretende prosseguir com a ofensiva, ocupar a Faixa de Gaza e entrar nas áreas onde os reféns estão detidos – já em risco de vida, agora em risco ainda maior. O protesto subiu de patamar, porque não havia outra escolha. A paciência coletiva, sobretudo das famílias dos reféns, chegou ao limite, tornando-se uma condição insuportável.

O primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, não ficou indiferente ao protesto e abriu ontem a reunião do governo afirmando que as manifestações pela libertação dos reféns e pelo fim da guerra apenas endurecem a posição do Hamas. “Sem sua derrota, os horrores de 7 de outubro voltarão e teremos de lutar em uma guerra sem fim”. Aos ouvidos de muitos, não passou de uma declaração lamentável e divisiva, proferida por quem estava no poder quando ocorreu o massacre e que, no teste dos fatos – mesmo após 22 meses – não conseguiu trazer todos os reféns de volta para casa nem encerrar a guerra, e cujas insinuações nebulosas sobre o futuro da Faixa de Gaza, tal como concebidas por ele e por seu governo, o mais à direita e extremista que Israel já conheceu, despertam sérias preocupações na maioria esmagadora da população.

Não há em Israel quem não queira a derrota do Hamas, organização terrorista assassina cuja visão de mundo coloca a destruição de Israel no centro. Mas a ordem dos fatores deve ser diferente da escolhida pelo governo: primeiro trazer os reféns de volta e só depois seguir na eliminação do Hamas. A devolução dos reféns é a meta primeira e suprema em todos os aspectos e, se agirmos de outra forma, não teremos mais a quem trazer para casa.

Sofremos essa dor imensa exatamente há um ano, em 31/8/2024, quando forças das IDF avançaram em Rafah e, em um dos túneis inspecionados, encontraram os corpos de seis reféns, executados por seus captores pouco antes, ao perceberem que as tropas israelenses estavam por perto…

Qualquer tentativa de dividir a população nesta questão – entre direita e esquerda, entre religiosos e seculares ou em qualquer outra clivagem, não é apenas cínica e repulsiva, mas um pecado contra os cidadãos de Israel e uma ferida mortal no núcleo da nossa convivência comum, no valor da solidariedade mútua com o qual todos crescemos.

Diante de uma liderança cujas fronteiras morais e éticas estão sob grave questionamento, o ponto de luz são os cidadãos determinados a resistir e a expressar uma posição baseada em valores, ainda que isso tenha um preço.

Justamente porque estas palavras são escritas em Israel mas se dirigem a leitores de fora, é importante observá-las em uma perspectiva ampla, que não se prenda ao momento político, mas procure compreender o significado profundo da questão do protesto em tempo de guerra – questão absolutamente legítima.

É certo que a população deve ou não criticar o governo durante o conflito, sobretudo quando suas palavras ecoam além das fronteiras do país? Como vimos acima, o próprio primeiro-ministro e os demais membros de sua coalizão sustentam que críticas assim enfraquecem Israel e fornecem munição a seus inimigos.

Em contrapartida, há quem considere que justamente a voz de um protesto interno, fiel aos valores da Declaração de Independência e aos fundamentos da democracia israelense, permite ao mundo perceber a força moral e ética da sociedade em Israel, uma sociedade na qual muitos se veem leais antes de tudo ao “reino”, isto é, ao ethos israelense comum sobre o qual o Estado foi fundado, e não necessariamente ao “rei”, aquele que o lidera quando ele se desvia desses alicerces.

E tudo isso sem esquecer que, na era das redes sociais e da comunicação global, todo debate interno se torna, inevitavelmente, patrimônio público. Talvez, numa realidade como esta, seja mesmo preferível que se ouçam vozes autênticas, em toda a sua diversidade, e não uma melodia orquestrada, que por si só desperta dúvidas quanto à sua veracidade.

Esse debate não é teórico, ele toca a própria vida. Silenciar diante de decisões que rompem com os valores fundamentais que nos unem como cidadãos é sinal de “lealdade” ou de “unidade” aparente – ou nos torna cúmplices de políticas que minam as bases da nossa existência? A abstenção de crítica não seria, de fato, um golpe contra o Estado, contra sua identidade democrática e contra o nosso futuro?

Há também aqui um paradoxo singular da sociedade israelense: muitas vezes, os mesmos cidadãos que protestam contra as políticas do governo são eles próprios – ou seus familiares – os primeiros a se apresentar, em tempos de emergência, ao serviço militar de reserva, a combater e a carregar o fardo. Assim foi na Primeira Guerra do Líbano, marcada por duras críticas públicas durante os combates, e assim ocorre hoje. Essa é uma essência israelense difícil de explicar fora daqui: a capacidade de conjugar um compromisso pleno com a defesa do Estado e, ao mesmo tempo, o direito – e até o dever cívico de protestar contra políticas governamentais que contradizem seus valores fundamentais.

Em grande medida, pode-se dizer que justamente o serviço e a participação nesse fardo é que conferem legitimidade ao protesto: ele não nasce da indiferença nem de uma crítica pela crítica, mas brota do conhecimento profundo da dura realidade e da compreensão de que esta realidade precisa mudar. Um protesto “estéril”, que se afasta da vida comum e se coloca como mero espectador, é amplamente percebido como ilegítimo; já um protesto que emerge do coração da experiência israelense – esse tem força para criar raízes.

Ainda assim, cabe acrescentar uma ressalva clara: o simples fato de carregar o fardo não implica concordar com ordens marcadas por uma “bandeira negra” de ilegalidade manifesta. E, para ser preciso – até agora, apesar das amplas críticas internacionais a Israel, não foram identificados casos desse tipo na guerra atual.

Fica claro, portanto, que o dilema não é técnico, mas ético. Ele diz respeito à essência da democracia e à questão do que significa lealdade verdadeira ao Estado. Em um país democrático, a crítica é parte inseparável da resiliência nacional; não é fraqueza, mas a prova de uma sociedade viva e saudável. O silêncio, por outro lado, pode ser interpretado como conivência com políticas, mesmo quando, na prática, não representam a opinião da maioria da população.

Em palavras simples: a questão é até que ponto estamos dispostos a permitir a existência de vozes divergentes – mesmo em tempo de guerra – e até que ponto entendemos que a resiliência nacional não é uniformidade, mas a capacidade de acolher o dissenso.

Portanto, a questão não é se se pode criticar,  mas como se deve fazê-lo: com responsabilidade, com compromisso para com o Estado e seu futuro, e distinguindo entre uma crítica legítima e substantiva e uma corrosão de seus próprios fundamentos. As fronteiras nem sempre são palpáveis, mas são claras para quem age com intenção honesta e responsável.

O protesto atual mostra que a sociedade israelense é capaz de sustentar essa tensão – de servir e lutar e, ao mesmo tempo, erguer uma voz clara contra políticas que lhe parecem perigosas ou destrutivas. Isso não é sinal de fraqueza; é prova da força cidadã e de uma democracia vibrante, que precisa ser preservada e cultivada. Diante das manifestações de agora, está mais evidente do que nunca: a voz crítica não é “contra o Estado” – mas parte inseparável da luta por ele e pela defesa do seu futuro.

Mais de quinhentas mil pessoas participaram do ato de encerramento do “Dia da Paralisação Nacional” – um gesto cívico que não traz apenas simbolismo, mas também necessidade: preservar e fortalecer a alma que nos sustenta como povo e como indivíduos. Os que participaram do evento foram os próprios cidadãos israelenses que se recusam a ficar de braços cruzados e, há meses, clamam pela devolução dos reféns vivos e pela restituição dos reféns mortos que o governo de Israel até agora falhou em trazer de volta – criando, assim, uma ferida moral que contradiz profundamente nossos valores, nossas crenças e nossa consciência.

O protesto não começou ontem, mas ontem atingiu um ápice significativo – e não vai parar. Como está escrito em “Pirkei Avot” (Ética dos Pais): “Em um lugar onde não há homens, esforce-se para ser um homem” – isto é, onde não há quem saiba ou possa fazer o que é correto, cabe ao indivíduo preencher o vazio, agir corretamente e mostrar o caminho.

Pois sim – nós, o público israelense, o faremos. A jornada já começou.

Esse texto não reflete necessariamente a opinião do Instituto Brasil-Israel.

Foto: Acervo Pessoal

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