
“Por que meu filho e o seu não?”
Daniela KreschDaniela Kresch
TEL AVIV – “Meu filho vai nascer e eu já tenho medo de quando ele for para o exército”. A frase é de uma amiga minha, nascida no Japão e que mora em Israel há anos depois que se casou com um israelense. Ela está grávida de 8 meses de um menino. E, como todas as mulheres israelenses, ela teme pelo futuro de seu filho. Sabe que, daqui a 18 anos, ele vai vestir o uniforme e se apresentar na caserna. Pode, inclusive, ser alistado para a infantaria e morrer em combate.
Mas nem todas as mães em Israel têm dificuldade de dormir. Mulheres da minoria ultraortodoxa em Israel – algo em torno de 13% dos israelenses – dormem tranquilas. Desde que o Estado de Israel foi criado, em 1948, a grande maioria dos jovens ultraortodoxos não se alista no exército. Há algumas explicações para isso – e em breve explico neste texto.
O importante é entender que, há 77 anos, jovens judeus seculares ou religiosos morrem em defesa do país. Mas a maioria dos ultraortodoxos (os haredim, extremamente religiosos), não. Como se diz em Israel: não há igualdade no fardo. Isto é, alguns levam nos ombros o fardo do serviço militar – algo que todos adorariam não precisar fazer – e outros não levam. Onde está a igualdade nisso? Principalmente em meio à guerra mais longa que Israel já enfrentou – a que começou em 7 de outubro de 2023 e que já levou à morte de 893 soldados (número de 15 de julho de 2025).
Esse é o conflito interno mais duradouro e latente dentro da sociedade israelense desde que o país existe. E é um conflito que explode como um vulcão de tempos em tempos. Uma das erupções aconteceu esta semana e ameaça o atual governo do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu – mais de direita e mais religioso da história de Israel.
Dois anos e meio desde a posse deste governo (no finalzinho de 2022), os partidos haredim que fazem parte do atual governo, cuja raison d’être é lutar pelas exigências de seu nicho de eleitores, ameaçaram deixar a coalizão porque o governo não cumpriu o que prometeu assim que foi formado: a aprovação de uma lei definitiva que isente os jovens ultraortodoxos do serviço militar “para sempre”.
Netanyahu prometeu que criaria e aprovaria essa lei na ânsia de formar um governo viável, em dezembro de 2022. Mas ele não imaginava que, em outubro de 2023, estouraria uma guerra – ou várias (contra Gaza, Líbano, Irã, Iêmen…). O público israelense, que nunca gostou da ideia da isenção dos haredim, mais do que nunca rejeita uma lei como essa. Milhares de soldados regulares e reservistas estão lutando em várias frentes há quase dois anos. Deixaram suas vidas, suas famílias, seus filhos, seus negócios e empregos. Caso mais israelenses fossem alistados, menos pressão haveria sobre eles. Haveria uma divisão mais justa do fardo.
Mesmo assim, os partidos ultraortodoxos que fazem parte da coalizão anunciaram que a deixarão. Dois partidos, o Deguel Hatorá (4 cadeiras no parlamento) e o Agudat Israel (3 cadeiras) – que concorrem juntos há anos na coligação ashkenazita Judaísmo da Torá – já entregaram cartas oficializando a saída. O terceiro partido ultraortodoxo, o sefaradita Shas (11 cadeiras), talvez renuncie nos próximos dias. O governo, que hoje tem 67 cadeiras (maioria das 120 do Knesset), poderia ficar com apenas 49. Minoria.
Pode ser que o governo consiga sobreviver. Mas não conseguirá solucionar essa batalha interna dentro de Israel. Na verdade, talvez tenha chegado ao fim a participação dos partidos ultraortodoxos nas coalizões de governo, mesmo as de direita. Se nem Benjamin Netanyahu, com a coalizão mais direitista da história, não consegue aprovar a isenção militar dos haredim, ninguém conseguirá.
Agora para a explicação dos motivos para a exigência de não alistamento pelo haredim. O que está em jogo aqui é o cerne da identidade israelense: o serviço militar obrigatório. Desde a fundação do Estado, Israel exigiu que todos os seus cidadãos judeus (homens e mulheres) servissem nas Forças de Defesa de Israel (FDI). É o “exército do povo”, um ethos que permeia a sociedade e une judeus de diferentes origens. A minoria árabe de Israel (21%) é uma outra história, para outro texto. Mas homens beduínos e drusos, por exemplo, servem no exército em percentuais ainda maiores do que os homens judeus.
Desde os primeiros dias de Israel, houve uma exceção parcial para os ultraortodoxos, uma concessão feita por David Ben Gurion a um pequeno grupo de 400 estudantes de yeshivá (seminários rabínicos): o acordo “Torató Omanutó” (“Estudo da Torá como profissão”). A ideia era permitir que esses poucos indivíduos se dedicassem integralmente ao estudo da Torá, um pilar essencial para a preservação da tradição judaica.
O problema é que os 400 se tornaram dezenas de milhares. Hoje, os haredim representam cerca de 13% da população israelense, com projeções indicando que chegarão a 25% em 2048, no centenário de Israel.
Para algumas lideranças ultraortodoxas, o exército é um “perigo” para os jovens haredim por dois motivos básicos:
1) O temor de que os jovens haredim – e não apenas os que estudam em yeshivás – entrem em contato “demais” com jovens seculares (incluindo mulheres) no exército e abram mão da religião – afinal, os rabinos haredim só acreditam nesse tipo de judaísmo, o ultraortodoxo.
2) A crença de que orar tem mais força do que lutar. Ou melhor: de que Deus só protegerá os judeus na Terra de Israel caso eles sejam extremamente religiosos e dediquem suas vidas à Ele.
Para evitar a “assimilação” à sociedade secular moderna e para manter o temor a Deus, seria primordial que os jovens haredim não se alistassem, mesmo que o exército tenha prometido inúmeras vezes que os haredim serviriam em pelotões só haredim, sem perigo de “secularização” e com a manutenção de todas as mitzvot.
Desde 2000, os ultraortodoxos tentam apresentar leis de isenção militar. Mas as leis foram derrubadas uma a uma pela Suprema Corte por não seguirem o princípio de igualdade entre os cidadãos previsto pelas leis básicas do país. Em 2024, o Supremo declarou que o governo deve recrutar jovens haredim para o serviço militar imediatamente. A decisão foi clara: os jovens haredim (não mulheres, estas podem ser isentadas por serem religiosas) devem ser imediatamente alistados, e aqueles que não o fizerem serão considerados desertores. Além disso, o tribunal determinou que o Estado não deve mais financiar as yeshivás para estudantes que não prestam serviço militar.
A questão do recrutamento haredi transcende a política partidária; ela atinge a alma de Israel. É a batalha entre uma sociedade que se vê unida no sofrimento e nos deveres militares e um segmento crescente de sua população que acredita que o estudo da Torá está acima do país e da segurança nacional. Esta é a hora de decidir para que lado Israel vai.
Esse texto não reflete necessariamente a opinião do Instituto Brasil-Israel.
Foto: wikimediacommons
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