Apertem os cintos, o golpe judicial voltou
10 jan 25

Apertem os cintos, o golpe judicial voltou

Daniela Kresch

Daniela Kresch

TEL AVIV – Lembram da malfadada “Reforma Judicial” (mais para golpe contra a democracia…), que levou centenas de milhares de israelenses às ruas antes dos ataques de 7 de outubro de 2023 e que parecia ter sido engavetado com a guerra? Sim, o golpe voltou. E com uma espécie de “harmonização facial” para disfarçar. 

Mas antes, uma contextualizada para lembrar do que se trata. Há exatos dois anos, em 4 de janeiro de 2023, Israel foi abalado por um anúncio chocante e surpresa do então recém-empossado ministro da Justiça Yariv Levin, braço direito do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, que havia acabado de voltar ao poder depois de um ano e meio na oposição à frente do governo mais direitista e religioso da História de Israel. Levin, um político cinzento, sem carisma, pálido e jeito de nerd, informou à nação que ele havia decidido fazer uma “reforma judicial” em Israel. Segundo ele, governos de direita estavam sendo castrados por uma Suprema Corte “esquerdista” e “militante”. E que era chegada a hora de cortar as asinhas do Supremo.

O anúncio, que significava nada menos do que uma tentativa de golpe na democracia israelense, levou hordas de israelenses às ruas. Por 10 meses, os protestos contra o golpe se multiplicaram nas maiores cidades do país e o que Yariv Levin mais conseguiu (certamente celebrou) foi dividir o país de uma forma nunca antes vista. Os “biblistas” (fãs de Netanyahu, apelidado de Bíbi) ficaram a favor do golpe e os não-bibistas, ficaram contra.  

A ameaça à democracia e a divisão interna são tidos como fatores cruciais para a decisão dos terroristas do Hamas em atacar Israel especificamente em 7 de outubro de 2023, cometendo o pior e mais atroz atentado terrorista contra judeus desde o Holocausto e empurrando Israel para a lama de uma guerra que dura até hoje contra diversos frontes de batalha. Para o Hamas e outros grupos fanáticos, jihadistas e antissemitas, esse era o momento! O momento de um Israel fraco e dividido.

A guerra (ou guerras: contra Hamas, Hezbollah, Irã, Houthis e todo um coquetel de salafistas sanguinários) levou a uma espécie de congelamento das intenções de Yariv Levin. A reação popular contra o golpe já havia levado ao fracasso de vários projetos de lei que ele tentou aprovar. Mas, quem achava que Levin, o cinzento, não carismático e impopular ministro da Justiça, deixou sua obsessão de lado, errou. Ele só estava esperando o momento certo para, de novo, tentar “passar a boiada” contra a Suprema Corte. 

Ao invés de aprender com as lições de 2023, Levin aprendeu apenas que, para conseguir o seu objetivo de enfraquecer o Supremo, ele tem que fazer as coisas sem tanto alarde e, se possível, como um disfarce de “consenso” para não enfrentar a oposição popular de antes. 

Então, novamente de supetão, fez um novo anúncio nesta quinta-feira, 9 de janeiro de 2025, quase dois anos depois do primeiro. Pegando todo mundo de surpresa, Levin divulgou um vídeo juntamente com o atual ministro do Exterior, Gideon Saar (pronuncia-se “Guideon Sa-ar”), no qual os dois, calmamente e sorridentes, anunciam um “acordo” para amenizar a “reforma judicial” de 2023. Anunciaram uma espécie de “Reforma 2.0, a vingança”.

Pelo vídeo, fica parecendo que dois lados contrários se sentaram para negociar e chegaram a um consenso, com cada lado renunciando a certas coisas para o bem comum. Um acordo justo negociado entre dois rivais, certo? Afinal, a até bem pouco tempo, Gideon Saar era um ferrenho opositor a Benjamin Netanyahu e ao tal golpe judicial de Levin (que, entre outros objetivos, também incluiria, quem sabe, uma lei que salvasse Netanyahu dos 3 casos de corrupção pelos quais está sendo julgado). Saar, ex-membro do Likud, partido de Netanyahu, era um dos críticos mais ferrenhos ao golpe judicial, liderando manifestações contra Levin e Netanyahu. 

Pois bem: Gideon Saar traiu todas as suas promessas desde que abandonou o Likud, em 2020, fundando o partido Nova Esperança. Ele prometeu em alto e bom som, em todos os canais de TV, em todos os jornais, em todos os discursos, que jamais se uniria a Netanyahu novamente. Como promessa de político vale menos do que um papel rasgado, em novembro Saar ingressou com seu partido na coalizão de governo liderada por Netanyahu e se tornou ministro das Relações Exteriores. E mais: anunciou que voltará ao Likud.

Se Gideon Saar e Yariv Levin estão novamente juntos no Likud, como podem dizer que a nova reforma no judiciário é um acordo, um consenso, entre rivais? O Likud negociou com o próprio Likud e chegou a um “acordo”? Bonito.

Agora, vamos entender melhor essa nova “reforma judicial” e o suposto “consenso” entre rivais que Gideon Saar qualificou de “histórico”, mas que especialistas classificam como mais uma tentativa de transformar ou Poder Judiciário num palco político, a partir da qual políticos passariam a escolher juízes do Supremo e não mais outros juízes, advogados ou profissionais do Direito. 

O novo golpe foca na Comissão de Escolha de Juízes, que Yariv Levin quer muito desmantelar para enfraquecer a influência de profissionais e aumentar a influência de políticos. Atualmente, a Comissão de Escolha de Juízes é composta hoje por 9 membros:

* 2 ministros do governo

* 3 juízes do Supremo

* 1 parlamentar da coalizão

* 1 parlamentar da oposição

* 2 representantes da Ordem dos Advogados de Israel

Para escolher o presidente do Supremo, são necessários 7 votos entre os 9 membros. Yariv Levin não gosta. Não, não. Principalmente porque o próximo presidente do Supremo – que ele fez de tudo para evitar a posse, mas não deve conseguir – será o juiz Yitzhak Amit, de quem Levin não vai com a cara (“muito militante”). A proposta de Levin e Saar, agora é que a Comissão de Escolha de Juízes continue a ser composta por 9 membros, mas com uma composição diferente:

* 2 ministros do governo

* 3 juízes do Supremo

* 1 parlamentar da coalizão

* 1 parlamentar da oposição

* 1 advogado escolhido pela coalizão

* 1 advogado escolhido pela oposição

Quer dizer: Levin e Saar chegaram a um “consenso” (entre aliados!) que significa retirar da Comissão os representantes da Ordem dos Advogados de Israel, substituindo-os por advogados indicados por políticos, um da coalizão e um da oposição. Além disso, seriam necessários apenas 5 votos para uma indicação passar. Justo? Pode até parecer, porque, afinal, a indicações do governo e da oposição. Mas o resultado é o aumento drástico da influência política na comissão.

Fora isso, o novo “consenso” retira o veto dos 3 juízes do Supremo a candidatos indicados a juízes. Ao invés disso, a proposta prevê que nenhum juiz poderá ser aceito sem apoio dos parlamentares da coalizão e da oposição (novamente, a influência de políticos aumenta muito e a dos profissionais cai drasticamente).

Mas o pior dessa nova proposta, segundo especialistas e entidades jurídicas que já se pronunciaram, é uma cláusula que quase passa despercebida nessa reconfiguração da Comissão de Escolha de Juízes. Trata-se da Lei Básica do Poder Judiciário (Hok Yessod: HaShfitá), que difere entre leis normais e as chamadas Leis Básicas (similares às leis constitucionais). Aguentem firme, vou tentar explicar.

Como Israel não tem uma Constituição, há uma dificuldade grande em definir que leis são “básicas” (irrevogáveis) e quais são leis normais, que o Supremo pode derrubar. O que Yariv Levin quer com sua nova “reforma 2.0” é estabelecer que a Suprema Corte não poderá revogar nenhuma “lei básica” aprovada pela Knesset (o Parlamento). E não fica claro quantos votos de parlamentares seriam necessários para aprovar uma lei básica (maioria simples? Seria um escândalo…). A problemática é que nunca foi criado um mecanismo que define o que é “lei básica” e o que não é. Atualmente, é só o autor definir uma proposta de lei como “básica” para ela ser considerada assim. 

O temor de entidades jurídicas é o de que, caso consiga que o Supremo seja incapaz de revogar leis básicas, qualquer governo populista ou extremista (como o atual) possa legislar leis que classifique como “básicas” asi no más. Teoricamente, digamos que o governo Netanyahu decida que a minoria árabe não poderá mais votar em eleições legislativas e classifique esse projeto como “lei básica”? A Suprema Corte estaria com as mãos atadas para julgar se isso é constitucional, se essa medida segue o que a Declaração de Independência de Israel estabelece (igualdade entre todos os cidadãos). É um exemplo teórico, mas amedrontador.

É necessário repetir algo que já escrevi muito neste espaço: a Suprema Corte é um poder fundamental na democracia israelense. Israel é parlamentarista com apenas uma casa (a Knesset), que comporta 120 parlamentares, entre eles o primeiro-ministro e seus ministros de Estado. Quer dizer: Legislativo e Executivo, por aqui, se confundem. O primeiro-ministro é membro do Parlamento. Ele legisla e executa. É por isso que um Judiciário forte e apolítico é fundamental para limitar o poder do governo, de qualquer governo.

Yariv Levin odeia isso. Odeia que um premiê não possa fazer o que quiser, quando eleito. Odeia que, se a Knesset legisla algo que o governo quer legislar, vem o Supremo e diz que é inconstitucional. “Que absurdo!”, pensa ele. “Somos o governo eleito, temos que ter o poder de fazer tudo o que quisermos”. 

Mas não é assim que as democracias funcionam. E é assim que as democracias morrem, como temos visto em tantos lugares pelo mundo. 

Por enquanto, os oposicionistas estudam a proposta para ver o que ela realmente sugere. Aliás, eu não sou advogada ou especialista em juridiquês, portanto posso estar cometendo erros neste texto. O que sei é que, em breve, saberemos como a sociedade civil israelense irá reagir a tudo isso. Apesar de todos os pesares, de toda a pressão, das guerras, da condenação internacional a um país que luta por seu futuro e tenta redefinir seus valores (errando muito, mas acertando também), Israel tem uma sociedade civil forte e ativa. Nada aqui passa fácil. Mas é preciso estar de olho.


Esse texto não reflete necessariamente a opinião do Instituto Brasil-Israel.

(Foto: Flickr/Adam Cohn)

Artigos Relacionados

Israel ajuda Turquia e teme seu próprio terremoto
Israel ajuda Turquia e teme seu próprio terremoto

Calendar icon 6 de fevereiro de 2023

Daniela Kresch TEL AVIV – Minha cama tremeu por volta das 3:30 da manhã desta segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023. Achei que estava sonhando, delirando ou com labirintite. Mas quando vi as luminárias do apartamento balançarem, entendi que se tratava de um terremoto. Só não sabia que o que eu havia sentido era um […]

Arrow right icon Leia mais
Como celebrar com 59 reféns em cativeiro e a paz ainda mais distante?
Como celebrar com 59 reféns em cativeiro e a paz ainda mais distante?

Calendar icon 29 de abril de 2025

Daniela Kresch TEL AVIV – Como celebrar o 77º ano da independência de Israel quando o país ainda luta uma guerra – a mais longa de sua história – e, principalmente, quando ainda há 59 reféns israelenses no cativeiro do Hamas em Gaza? Como comemorar o Iom HaAtzmaut (Dia da Independência) em festas, piqueniques e […]

Arrow right icon Leia mais
Carta aberta ao Presidente Lula de uma cidadã israelense
Carta aberta ao Presidente Lula de uma cidadã israelense

Calendar icon 23 de fevereiro de 2024

Estimado Sr. Presidente, Com profunda preocupação, repudio e tristeza, escrevo esta carta aberta a você, diante de suas recentes declarações que compararam a legítima defesa de Israel contra o Hamas, em resposta ao brutal ataque terrorista de 7 de outubro, aos atos monstruosos e à política de extermínio organizado de assassinato em massa pelo regime […]

Arrow right icon Leia mais