CENSURA À MÚSICA DE ISRAEL: A POLÍTICA POR TRÁS DO EUROVISÃO
14 mar 24

CENSURA À MÚSICA DE ISRAEL: A POLÍTICA POR TRÁS DO EUROVISÃO

Daniela Kresch

Daniela Kresch

TEL AVIV – O Eurovision Song Contest (ESC), ou Eurovisão em português, é o maior festival da canção do mundo. Acontece desde 1956 na Europa e conta com centenas de milhões de espectadores. Mas o festival, que foi criado para apaziguar os europeus depois da Segunda Guerra Mundial, é hoje tão musical quanto político. Exemplo em caso: a canção de Israel para o Eurovisão de 2024, que teve que ser modificada para ser aceita.

Israel finalmente divulgou na noite de sábado, 9 de março, a música “Hurricane” (Furacão), que representará o país no Eurovisão deste ano, em Malmo, na Suécia, na voz da cantora Eden Golan. A divulgação aconteceu nos acréscimos do segundo tempo, porque o deadline para a submissão de canções foi justamente 9 de março. Caso tivesse atrasado mais, Israel ficaria de fora da competição. 

E por que tanta demora? Porque os compositores Keren Peles, Avi Ohayon e Stav Berger tiveram que mudar a letra da música por exigência da União Europeia de Radiodifusão, que organiza o evento. O título original era “October Rain” (Chuva de outubro). Mesmo que não abertamente, a música certamente se referia, nas entrelinhas, ao massacre de 7 de outubro. Para o pessoal do Eurovisão, no entanto, tratava-se de uma mensagem “política”, o que é proibido pelos estatutos do festival de música. 

A princípio, os compositores não quiseram mudar a letra original, mas acabaram contemporizando após intervenção de ninguém menos do que o presidente de Israel, Isaac Herzog. Ele sabe o quanto é importante para o país continuar participando dessa competição. Renunciar a ela talvez reforçasse a imagem de Israel como um “país pária”. Diante disso, a música foi retocada e agora fala de “uma mulher passando por uma crise”. 

Abaixo, a tradução para português das duas letras, a da original “Chuva de outubro” e da retocada “Furacão”. Julguem vocês mesmos e a primeira era mesmo “política” demais e se a segunda é assim tão diferente:

É verdade que o regulamento do Eurovisão, em sua cláusula 2.6, diz: “O ESC é um evento não político. Todas as empresas de radiodifusão participantes (…) devem assegurar que todas as medidas necessárias sejam tomadas a fim de garantir que a ESC não será, em caso algum, politizado e/ou instrumentalizado e/ou instrumentalizado. Não serão permitidas letras, discursos, gestos de natureza política, comercial ou similar”.

Mas a regra nem sempre é seguida, para dizer o mínimo. Em 2009, por exemplo, a delegação da Geórgia enviou uma música com título nada sutil que demonstrava o que o país sentia em relação a Vladimir Putin: “We Don’t Wanna Put In”.

O caso recente mais flagrante aconteceu em 2016 com a canção vencedora da Ucrânia: “1944”. A letra relembrava as deportações forçadas dos povos tártaros por Joseph Stalin em 1944, numa alusão à invasão russa da Crimeia: “Quando estranhos chegam e batem à sua porta/eles vão matar você e dizer/’não temos culpa’”. 

Em 2022, novamente, a Ucrânia voltou a vencer o Eurovisão, e não porque a canção era a melhor. Os jurados preferiram a música do Reino Unido (muito melhor mesmo), mas o público – responsável por 50% dos votos – escolheu a banda ucraniana Kalush Orchestra. É verdade que a letra da música não tinha nada aparentemente político, mas assim que a apresentação dos ucranianos terminou, um dos cantores gritou: “Peço a todos vocês, ajudem a Ucrânia, ajudem Mariupol, ajudem-nos a ficar de pé agora!”. 

Naquele mesmo ano, a Islândia terminou sua apresentação com o apelo “Paz para a Ucrânia!”. A representante da Lituânia mostrou uma bandeira da Ucrânia quando um dos apresentadores a entrevistou ao vivo. Nas arquibancadas, as bandeiras ucranianas eram muitas. A produção daquele ano, no entanto, afirmou que todas as demonstrações em apoio à Ucrânia foram apenas “gestos humanitários” e não “declarações políticas”. 

Aliás, os russos estão barrados da competição desde 2022, quando invadiram a Ucrânia. Coincidência? Claro que não, apesar da a organização insistir que o banimento não é político e sim por motivos “técnicos”. 

Há muitos outros exemplos. Até mesmo Israel já apresentou uma canção flagrantemente anti-programa nuclear iraniano em 2007, com a banda Tipex (ou Teapacks, em inglês). Quer coisa mais política do que: “Há líderes malucos (…) com tecnologia demoníaca que querem nos fazer mal. Eles vão apertar o botão”.

Dessa vez, no entanto, a organização do Eurovisão não perdoou a canção israelense. Provavelmente por temor de que o festival seja transformado numa arena de protestos pró-palestinos – o que provavelmente irá acontecer. Não tenho dúvidas de que bandeiras palestinas e discursos anti-Israel serão proferidos entre uma música e outra. Sem contar os protestos que devem acontecer do lado de fora. 

Não vai ser nada fácil para a Eden Golan, uma novata de 20 anos que ganhou o direito de representar Israel após vencer um reality show estilo “The Voice”. A Islândia, por exemplo, já exigiu que Israel fosse barrado este ano do Eurovisão. Vários outros artistas se juntaram ao coro. Pelo menos, até agora, a União Europeia de Radiodifusão não aceitou qualquer exigência dessas.

Hoje, o Eurovisão é o maior programa ao vivo do mundo. E não só na Europa. Há países participantes do festival que não são exatamente parte do continente, como Austrália, Israel, Chipre, Turquia, Geórgia, Azerbaijão… É uma febre mundial, apesar das músicas meio bregas, meio kitschs. Mas há canções que eventualmente viram fenômenos internacionais, como “Waterloo”, do Abba; “Volare” ou “Gengis Khan”, que teve até versão em português com o Sidney Magal.

Israel participa do Eurovisão desde 1973 e é um dos mais premiados. Já ganhou 4 vezes – a última em 2018 com a música “Toy”, da cantora Netta Barzilai. O movimento BDS, que prega o boicote a Israel, tentou fazer uma campanha contra a cantora, na época. Mas Netta venceu assim mesmo, e de lavada. No ano seguinte, 2019, o festival aconteceu em Tel Aviv e, apesar de algum temor, aconteceu sem problemas. Mas teve alguns pequenos contratempos: a transmissão online da primeira semifinal foi hackeada. Imagens de explosões em Tel Aviv substituíram o streaming ao vivo. 

Muito se discute, por aqui, o quanto questões políticas influenciam os votos contra ou a favor de Israel. Isso fica claro no caso da Rússia, que foi banida da competição duas vezes. Mas e Israel? As três primeiras vezes que Israel venceu foram próximas a acordos de paz. Em 1978 e 1979, estava bem na época do acordo com o Egito. Em 1998, foi só alguns anos depois dos Acordos de Oslo. 

Mas nem sempre isso parece acontecer. Em 2004, por exemplo, no meio da Segunda Intifada, a linda balada da cantora Shiri Maimon ficou em 4° lugar, uma ótima posição. E no ano passado, em 2023, a canção “Unicorn” de Noa Kirel fez bonito e ficou em 3° lugar, algo nada fácil.

Só nos basta esperar para ver se o Eurovisão deste ano será um circo de horrores anti-Israel ou apenas uma competição musical.

Confira o clipe da música:

Este texto não reflete necessariamente a visão do Instituto Brasil-Israel.

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