Mundo Insone
30 out 23

Mundo Insone

O kibutz Nir Oz, na fronteira com Gaza, destruído após ataque terrorista do Hamas (Foto: Felipe Wolokita)

Avraham Milgram*

Poucos dias após estalar a Primeira Guerra Mundial, Stefan Zweig, dividido entre os impulsos patrióticos e o horror à guerra, num estado de inquietação brutal, percebeu que ele vivia num mundo insone. Hoje, em outras circunstâncias, num mundo eclipsado por chefes de estado desvairados, regimes autoritários e fanáticos de todos matizes, nossa percepção é similar à de Zweig de cem anos atrás. O massacre perpetrado pelo Hamas contra Israel em 7 de outubro é indubitavelmente um ápice, mas não o único da insanidade mundial que nos atormenta.

Nos primeiros dias, Israel ficou abalado face ao déjà-vu da guerra de Yom Kipur. Rapidamente, as cenas da barbárie e o horror perpetrado pelos genocidas, todavia não classificadas pelo lexicógrafo, evocaram o déjà-vu da Shoá. Trauma que deixou distúrbios jamais curados na psique judaica. Pelo contrário, ficamos chocados, desorientados e perplexos, mesmo sendo a condição existencial dos judeus em geral, e de Israel em particular diametralmente oposta à dos anos 30′ e 40′ do século passado.

O 7 de outubro de 2023 estremeceu os axiomas da política israelense estabelecidos por Benjamin Netanyahu nos últimos 15 anos. Sua doutrina dizia que não apenas é possível conviver com o Hamas ao lado da fronteira com Israel como sua presença contribui para enfraquecer seu rival da Cisjordânia, a Autoridade Palestina. Em várias ocasiões Netanyahu afirmou ser o fortalecimento do Hamas benéfico para Israel. Com este objetivo seu governo autorizou ao Catar enviar grandes somas de dólares ao Hamas, permitiu a entrada de milhares de trabalhadores palestinos de Gaza a Israel e mais. O manipulador maquiavélico Netanyahu jamais percebeu a índole fundamentalista genocida do Hamas. O “perigo” de um possível acordo com a Autoridade Palestina de Mahmud Abbas, a seu ver, seria mais prejudicial que administrar um interminável conflito armado com o Hamas. O 7 de outubro desmoronou sua doutrina que ruiu como um castelo de areia. Ficou provada sua falácia e tragicidade. Ele não é o culpado, mas certamente ele e seu governo são responsáveis pelo que ocorreu nas cidades de Sderot e Ofakim, nos kibutzim e moshavim de Beeri, Kfar Aza, Nir Oz, Nachal Oz, Netiv Haasará e outras unidades agrícolas ao redor de Gaza. A culpa pela morte de 1400 israelenses e o rapto de 239 reféns (identificados até 29.10.2023) que se encontram em Gaza, se deve unicamente ao Hamas genocida. Mas a responsabilidade pela política falaciosa que conduziu ao 7 de outubro é toda ela de Netanyahu. Sem contar que nos últimos nove meses que antecederam o massacre de 7 de outubro, Netanyahu, em lugar de se preocupar pela economia, segurança militar, saúde, educação e bem estar dos cidadãos, ele atirou-se com ímpeto na “reforma judicial” com vistas a enfraquecer a democracia, incitar contra os setores mais produtivos da economia, o alto comando do exército de Israel, reservistas e oficiais da força aérea. Por tudo isso, após o final da guerra, Netanyahu deverá confrontar os cidadãos de Israel num inquérito estatal que examinará a fundo o âmbito da sua política traidora que não preparou o país para os grandes desafios de Israel. É o que a maioria dos israelenses anseiam. Netanyahu chegou tragicamente ao final de sua carreira e deve desaparecer do cenário político de Israel para sempre. O segundo axioma da doutrina de Netanyahu afirmava que o Estado de Israel poderá existir, progredir e se afirmar desprezando e negligenciando a questão palestina. Ou seja, acordos de paz e relações diplomáticas com o mundo árabe e muçulmano são viáveis sem solucionar o conflito com os palestinos. Este axioma também se desfez com sua política falaciosa. O Hamas decidiu atacar Israel para desqualificar as conversações entre a Arábia Saudita, EUA e Israel, com vistas a uma provável paz. Mas para isso era mister levar em conta a Autoridade Palestina. O paradoxo da política de Netanyahu, que fez de tudo para não solucionar o conflito com os palestinos, mesmo favorecendo o Hamas por anos a fio, levará, inevitavelmente, a implementar a doutrina de Yitzhak Rabin, de dois estados para dois povos, contra a qual Netanyahu se opôs, difamou e incitou. O responsável por ambos fracassos leva o nome de Benjamin Netanyahu!

E agora sobre o antissemitismo que anda à solta por todos os lados. O ódio aos judeus (racial, social, político, cultural, econômico e religioso) é um fator built in na cultura ocidental e cristã. Em geral, a aversão e o ódio aos judeus se encontram em estado latente, é resiliente e reluta em desaparecer. Apenas varia de grau e insanidade. Aliás, foi Elie Wisel quem disse que o antissemitismo é uma doença da qual sofrem não-judeus, mas quem morre dela são judeus.  É preciso estímulos para o antissemitismo se manifestar e tornar-se visível. A ocupação militar e a colonização nos territórios da Cisjordânia é um deles, a supremacia militar de Israel é outra. Porém, é preciso salientar que o ódio latente, ativo ou funcional contra os judeus, antecede a existência de estímulos, sem o qual, ficariam sem efeito. O paradigma inverso prova esse postulado. Na China e Japão, bem como no Vietnam, Camboja, Laos e as Filipinas, além das duas Coreias e a Índia, onde habitam a maioria absoluta dos habitantes do planeta, os estímulos que no Ocidente provocam ondas de ódio à Israel e aos judeus, esses estímulos se encontram desativados, em disfunção, visto a inexistência dos padrões históricos antissemitas inerentes à cultura ocidental e países árabes mais recentemente.

O direito legítimo de defesa de Israel, que incide em mortes acidentais de civis palestinos em Gaza, é um estímulo negativo que leva milhares a gritar “Palestina Livre”, que não raras vezes parece ser um eufemismo que augura pela destruição de Israel. Mormente, as pessoas não se importam e tampouco se dão ao trabalho de examinar as razões dos conflitos, a tendência é apoiar os underdogs. Nos primeiros dias a mídia, redes sociais e grandes públicos, chocados com os atos genocidas do Hamas, se posicionaram a favor de Israel. Mas logo após os primeiros revides da força aérea israelense, o pêndulo da simpatia se moveu a favor dos palestinos. Se esses nômades efêmeros de hoje testemunhassem os bombardeios das cidades alemãs pelos aliados em 1943-1944, eles eventualmente se identificariam com a população alemã sacrificada, sem entrar no âmago da responsabilidade de quem conduziu magistralmente a Alemanha à destruição. Em ambos casos, na Alemanha e Gaza agonizantes, ambas populações foram até o final sem se rebelar contra aqueles que os desgraçaram. Com a cultura amplamente difundida da memória do holocausto através de filmes, museus, literatura e visitas a campos de concentração e extermínio, a população ocidental aprendeu a se sensibilizar com judeus mortos sem demonstrar coerência em relação aos judeus vivos que decidiram never again.

Para o nosso mundo insone nada mais pontual que a frase profética do grande poeta, escritor e ensaísta português Fernando Pessoa (1888-1935): “Quando eu nasci as frases que hão de salvar a humanidade já estavam todas escritas, só faltava uma coisa – salvar a humanidade”. Sim, o poeta tinha razão, não são necessárias mais palavras, porém ações que nos salvem da insanidade humana.

*Avraham (Tito) Milgram nasceu em Buenos Aires em 1951, cresceu em Curitiba e emigrou para Israel em 1973. Cursou o bacharelado, mestrado e doutorado em história judaica na Universidade Hebraica de Jerusalém. Milgram foi historiador do Museu do Holocausto do Yad Vashem e do Pavilhão Judaico nº 27 em Auschwitz. Publicou vários livros sobre judeus no Brasil e Portugal no século XX, editou a Enciclopédia dos Justos das Nações, a coletânea Fragmentos de Memórias (2010) e os Encantos e Desencantos (Amazon Brasil 2021). Ele deve sua formação humanista ao movimento juvenil sionista-socialista Dror. Avraham Milgram é historiador independente, vive em Tzur Hadassa é casado com a Beth e seus filhos e netos nasceram em Israel.   

Este texto não reflete necessariamente a opinião do Instituto Brasil-Israel, mas do autor

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