Do campo de batalha ao palco diplomático: O preço oculto da ofensiva em Gaza
13 ago 25

Do campo de batalha ao palco diplomático: O preço oculto da ofensiva em Gaza

Revital Poleg

Revital Poleg

A decisão do governo Netanyahu de reconquistar amplas áreas de Gaza e expandir a ofensiva para a cidade e para os campos centrais – tomada apesar da oposição explícita dos principais dirigentes do sistema de defesa, em especial a do chefe do Estado-Maior, Eyal Zamir – não constitui apenas mais uma etapa militar. Representa um ponto de inflexão que conecta quatro arenas centrais: a de segurança, a política interna, a internacional e o contexto regional. Além das consequências diretas em cada uma delas, a decisão traz também o potencial de gerar resultados profundos não planejados e até contrários aos objetivos declarados pelo governo.

Esse impacto político torna-se ainda mais evidente quando se considera que, desde o famoso discurso de Bar-Ilan, em 14 de junho de 2009, no qual Netanyahu manifestou, pela única vez, apoio de princípio à solução de “dois Estados para dois povos”, com várias ressalvas quanto à criação do Estado palestino, ele nunca voltou a expressar apoio à ideia. Ao contrário, passou a se opor de forma veemente, em um processo cada vez mais intenso ao longo dos anos, ancorado no princípio de “gerenciar o conflito” e não “resolvê-lo”.

Justamente nesse contexto, a atual decisão do governo de ocupar Gaza cria um paradoxo estratégico: a reação internacional contrária à medida, somada à crescente indignação com a continuidade dos combates, à ocupação planejada, suas graves consequências e à ausência de uma perspectiva política, tudo isso vem acelerando processos de reconhecimento diplomático de um Estado palestino que, embora tenham começado antes da decisão, se intensificaram significativamente em razão dela, a ponto de poderem promover, contrariamente à vontade de Netanyahu, uma realidade política contra a qual ele próprio lutou ferozmente.

A narrativa de “vitória absoluta” e “derrota final do Hamas”, que voltou a aparecer na recente decisão do governo, não é nova. Desde 8 de outubro de 2023, Netanyahu a repete, até transformá-la em um slogan desgastado, mesmo quando o próprio “ponto de decisão” muda e se afasta. O objetivo prometido é constantemente “deslocado”: primeiro foi o corredor Filadélfia, depois o corredor Morag, em seguida Rafah, e, agora, a cidade de Gaza e os campos centrais. A mesma promessa, um objetivo diferente; a mesma declaração, sem data para terminar e sem horizonte claro.

A mensagem por trás dessas declarações, sem diminuir a importância das considerações de segurança, permanece ambígua não apenas em seu aspecto militar, mas também em um conjunto mais amplo de questões cruciais. No aspecto moral e ético: o ethos israelense e o mandamento da “redenção de cativos” na tradição judaica, que coloca a libertação de todos os reféns como um valor supremo, objetivo que ainda não foi alcançado; ao lado disso, as duras consequências humanitárias para os civis de Gaza, que colocam Israel diante de questões de responsabilidade moral e proporcionalidade; no aspecto socioeconômico, com o desgaste contínuo das Forças de Defesa de Israel e o impacto dos períodos de serviço militar na reserva mais longos da história sobre a sociedade, com danos persistentes à resiliência nacional, ao tecido social e à economia; e no aspecto internacional, a partir de uma queda dramática no status de Israel no cenário global e o agravamento das reações mundiais contra o país.

Assim, a “derrota definitiva” declarada torna-se um objetivo difícil de concretizar não apenas por limitações de força, mas também pelos custos cumulativos que produz em cada uma dessas arenas.

Na arena interna, a decisão serve como ferramenta para preservar a coalizão de direita radical que pressiona pela escalada e pela ampliação da operação em Gaza; no plano externo, é apresentada como uma medida com “janelas de preparação” destinadas a suavizar resistências internacionais e também internas. No entanto, o modelo de “apaziguar aqui e prometer ali” gera uma dupla desconfiança: no exterior, consolida-se a percepção de que Israel não tem perspectiva política; internamente, cresce a sensação de que a liderança “ganha tempo” e evita enfrentar as questões fundamentais do fim da guerra, limitando-se a slogans genéricos e ambíguos.

A tentativa de sustentar simultaneamente “duas bandeiras”, não conquistar e não se retirar, fracassou repetidamente no teste da história. Basta lembrar a Primeira Guerra do Líbano, em que os combates e a permanência militar em território libanês se prolongaram por 18 anos (1982-2000) sem uma decisão efetiva, com desgaste militar, a crença de que a pressão militar traria ganhos políticos e o receio de que a retirada fosse interpretada como admissão de fracasso. O resultado: tensão contínua entre Israel e o governo americano de Ronald Reagan, que se opunha à guerra, protestos públicos em larga escala e uma profunda ruptura interna, marcada por polarização política e identitária. Será que nada aprendemos?

Protestos públicos e ruptura interna já são, infelizmente, uma realidade também hoje. Ao contrário de episódios passados de tensão com Washington, no caso atual Netanyahu conta com o apoio do presidente Trump – apoio este que tende a continuar enquanto o presidente norte-americano avaliar que os acontecimentos em Gaza não prejudicam seus interesses. Donald Trump deixou claro que não pretende dizer se apoiou a decisão do gabinete de lançar a ofensiva para conquistar a cidade de Gaza, mas insinuou concordar com os argumentos de Netanyahu sobre a necessidade de exercer maior pressão militar sobre o Hamas.

A comunidade internacional não compartilha, porém, dessa posição do Presidente Trump. A iniciativa apresentada conjuntamente pela França e pela Arábia Saudita na conferência da ONU, no fim de julho, para o reconhecimento de um Estado palestino com base nas fronteiras de 1967 e capital em Jerusalém Oriental, ganhou força e se acelerou nos últimos dias, após a decisão do governo de conquistar Gaza e devido à indignação que ela provocou. É importante destacar que essa iniciativa, à qual os EUA se opõem, inclui também elementos positivos para Israel: pela primeira vez, todos os países da Liga Árabe condenaram o massacre de 7 de outubro e apoiaram a retirada do controle de Gaza das mãos do Hamas, com seu consequente desarmamento.

Enquanto a guerra prosseguir nos moldes definidos pela decisão do governo, as imagens da crise humanitária em Gaza continuarão a se espalhar, e a anexação gradual na Cisjordânia continuará a avançar. E o isolamento político de Israel poderá se agravar. Tudo isso pode acabar ajudando o Hamas a continuar tentando apagar da memória internacional os horrores de 7 de outubro e reforçar o momentum global em favor do reconhecimento de um Estado palestino na próxima Assembleia Geral da ONU.

Embora do ponto de vista do direito internacional a Autoridade Palestina não atenda aos requisitos essenciais para a existência de um Estado, a votação prevista na Assembleia, mesmo que seja apenas declaratória, pode ter peso político e simbólico significativo. O reconhecimento, por si só, não resultará na criação efetiva desse Estado, enquanto Israel não o permitir. No entanto, o avanço contínuo desse processo, com todas as suas implicações políticas, diplomáticas e, sobretudo, jurídicas, poderá dificultar de forma relevante a atuação de Israel no cenário internacional e, ao mesmo tempo, facilitará ainda mais para a “internacionalização” do conflito, levando a uma crescente intervenção da comunidade internacional na disputa israelo-palestina.

Em uma avaliação cautelosa, pode-se dizer que a decisão do gabinete – com suas formulações complexas, que falam em “tomada de controle de Gaza” e não em “ocupação de Gaza”, e sem clareza sobre o cronograma de implementação prática – indica que Netanyahu compreende bem as implicações políticas internacionais que tal medida pode acarretar para Israel. Ainda assim, apesar da firmeza de suas declarações à imprensa, é possível supor que sua execução literal ainda não esteja garantida conforme anunciada. No momento em que estas linhas são escritas, já se sabe que Israel considera enviar, ainda esta semana, uma delegação a Doha, no Catar, diante da possibilidade de retomada das negociações visando um acordo abrangente para a libertação dos reféns, como exige o presidente Trump. Espera-se que, caso isso se concretize, a decisão do gabinete seja, no mínimo, significativamente reduzida.

Esse texto não reflete necessariamente a opinião do Instituto Brasil-Israel.

Foto: Reprodução/GPO

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