
A Marcha da Insensatez em Gaza? O desafio de Israel diante da crise humanitária
Revital PolegRevital Poleg
Quase cinquenta anos se passaram desde que a historiadora americana Barbara Tuchman publicou seu livro “A Marcha da Insensatez”, no qual analisou como países e líderes conduziram seus povos a desastres e erros históricos – não por ignorância ou falta de informação, mas justamente quando tinham dados à disposição, alertas foram emitidos e havia alternativas e oportunidades para escolher um caminho diferente. Tuchman definiu isso como “insensatez governamental”: a tendência de os governos repetirem decisões equivocadas, por apego obstinado a interesses estreitos, cálculos políticos de curto prazo ou a uma ilusão de controle. Sua tese é especialmente perturbadora porque não trata de uma falha de inteligência, mas de uma falha moral e de liderança – aquela que decorre de uma escolha consciente de ignorar a realidade e apegar-se a uma realidade ilusória.
Na Israel do verão de 2025, é difícil não se lembrar do livro de Tuchman. É ainda mais difícil olhar de frente para a dura realidade da guerra em Gaza e evitar a conclusão de que Tuchman estava certa: a marcha da insensatez que ela descreveu está se materializando diante de nossos olhos, em toda a sua intensidade, aqui e agora.
A decisão do governo de Israel de entrar em guerra após o ataque terrorista assassino do Hamas em 7 de outubro foi totalmente justificada e até inevitável. O ataque horrível daquele sábado sombrio colocou o Estado de Israel diante de um desafio existencial concreto, sem precedentes em sua magnitude — de segurança, moral e humano. Diante de tais atrocidades, Israel não teve outra escolha senão reagir. A entrada em guerra foi necessária e contou com ampla legitimidade, tanto interna quanto internacional.
Mas desde então, já se passaram quase 22 meses. Israel continua a guerra em Gaza, sem que uma parcela cada vez maior de cidadãos compreenda para onde o país está indo. Os objetivos definidos no início da guerra — principalmente a destruição do Hamas e a libertação de todos os reféns — não foram alcançados, e a operação militar está cada vez mais perdendo direção. Os últimos meses de combate parecem mais um impasse prolongado do que uma ação estratégica capaz de trazer resultados concretos. Falta uma bússola política, não existe um plano claro para o dia seguinte, e a sensação cada vez mais profunda na sociedade israelense, cansada, exausta e sofrida, é de futilidade, perda de rumo e de um preço humano insuportável. Ainda assim, o governo segue em sua linha.
O agravamento da crise humanitária em Gaza e o aprofundamento do sofrimento da população civil, que já há algum tempo ecoam no mundo de forma crescente, ultrapassaram até mesmo os limites da indiferença do governo de Israel. As imagens e relatos dolorosos vindos de Gaza chocaram o mundo, especialmente os aliados mais próximos de Israel, alguns dos quais já vinham alertando sobre isso há bastante tempo. Agora, porém, o mundo se levantou, exigindo de forma contundente que a crise fosse resolvida imediatamente, o que também afetou diretamente o status internacional de Israel, que despencou a um nível sem precedentes.
Diante desse cenário, o primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, rapidamente mudou de direção e ordenou a entrada imediata de ampla ajuda humanitária em Gaza por vias terrestres e aéreas. Tuchman descreveu isso muito bem como uma característica marcante da insensatez governamental: a fixação em concepções pré-estabelecidas e a ignorância dos fatos, até que a realidade imponha a mudança como último recurso.
É importante enfatizar: Israel tem uma contribuição significativa para a crise humanitária em Gaza, principalmente por ser o exército que conduz a guerra no terreno. Isso ocorre em um ambiente extremamente complexo, no qual a presença de grupos terroristas misturados à população civil — realidade pela qual Israel não é responsável — acaba gerando desafios particularmente graves, inclusive no que diz respeito ao fornecimento de ajuda humanitária. Além disso, a política israelense nessa área oscilou ao longo do tempo, o que prejudicou o fornecimento contínuo de ajuda, cujo ponto mais crítico foi a decisão de suspender a entrada de assistência na Faixa de Gaza após interromper o segundo cessar-fogo em março de 2025.
No entanto, grande parte da culpa recai, antes de tudo, sobre os ombros do Hamas. Desde o início da guerra, ele especulou com a ajuda humanitária, roubou-a da população de Gaza com grande sucesso, ameaçando suas vidas e até assassinando civis, fazendo de tudo para manter seu controle sobre o território palestino. Trata-se de um padrão consistente de exploração da ajuda: entrincheiramento sistemático em áreas povoadas, o que provocou interrupções no fornecimento, tomada de caminhões, estocagem de mercadorias, desvio da ajuda para fins militares e uso dela para comércio interno destinado a financiar atividades terroristas.
Mas quando o quadro geral é tão negativo e chocante, a pergunta “quem é mais culpado” perde o sentido. De qualquer ângulo que se olhe, trata-se de uma situação lose-lose. Israel, como um Estado soberano, judaico e democrático, cujos valores humanitários fazem parte de seu ethos, deve estar ao lado certo desses valores. O país não pode se permitir estar em uma situação em que seja acusado de ser responsável por uma tragédia tão grave, mesmo que grande parte das circunstâncias não esteja sob seu controle. E mesmo quando o Hamas, organização terrorista assassina, conduz contra ela uma campanha de propaganda global, realizada, ao que tudo indica, com coordenação e financiamento de seu patrono, o Catar.
O contexto das reações internacionais a Israel diante da crise humanitária em Gaza é, como sempre, mais amplo. Após uma guerra que já dura cerca de 22 meses, o governo e seu líder são percebidos como estando fora das normas internacionais. Essa percepção precisa mudar se Israel quiser recuperar a confiança internacional. Não se trata apenas de tentar “agradar” o mundo, mesmo que isso tenha sua importância. Trata-se, antes de tudo, de devolver a Israel o lugar natural e legítimo que a sociedade israelense merece — sociedade que, em sua ampla maioria, há muito deseja o fim da guerra e a libertação de todos os reféns.
Esta é uma hora de decisão para Netanyahu. Nas circunstâncias atuais, é razoável supor que ele não poderá continuar indefinidamente a arrastar os pés ou a fazer declarações vagas e inúteis, voltadas principalmente ao público político de base, mas terá que tomar decisões claras sobre os próximos passos. A paciência do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, diante da situação atual, e o receio de que a mancha da tragédia humanitária possa também atingi-lo, podem se tornar uma alavanca significativa de pressão sobre Netanyahu para agir.
A gama de decisões que ele tem diante de si vai desde aceitar a mais recente iniciativa saudita — atualmente sobre a mesa no fórum que ocorre na ONU, liderado pela Arábia Saudita e pela França (sem a participação dos EUA e de Israel) e que propõe, na prática, uma nova ordem no Oriente Médio baseada no fim da guerra em Gaza e na solução do conflito israelo-palestino — até a opção que os parceiros políticos de Netanyahu mais apreciam: conquistar toda a Faixa de Gaza e impor um governo militar, com tudo o que isso implica. Entre esses dois extremos, para a maioria dos israelenses está claro o que é preferível.
Netanyahu é um homem culto. Certamente está ciente do alerta de Barbara Tuchman de que os governos tendem a continuar em políticas que contradizem seus próprios interesses quando estão presos a elas por ideologia ou por interesses estreitos. Uma decisão correta agora pode ter um impacto positivo não apenas no futuro, na segurança e na prosperidade da sociedade israelense, mas também na sociedade civil em Gaza. Será isso possível? Para isso é necessária uma liderança que não nos conduza à insensatez.
Esse texto não reflete necessariamente a opinião do Instituto Brasil-Israel.
Foto: Alan Santos/Presidência da República do Brasil (2019)
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