
Como duas coisas que parecem contraditórias podem ser verdade ao mesmo tempo
Daniela KreschDaniela Kresch
TEL AVIV – É possível entreter dois – ou mais – pensamentos ao mesmo tempo em nossa massa cinzenta. Ideias paralelas ou até mesmo contraditórias. Não é preciso se envergonhar ou achar que há algo estranho nisso. Sim, Donald J. Trump, esse Donald J. Trump, o qual abomino 99% das vezes, também é capaz de fazer algo certo. Como quando costurou os Acordos de Abraão, em 2020, que selou a amizade entre Israel, Emirados Árabes, Bahrein, Marrocos e Sudão. Ponto para ele.
Sim. Trump, a meu ver, em geral erra. Mas às vezes – mesmo que sejam poucas – acerta.
Todos nós temos mil identidades. Eu, por exemplo, sou mulher, hetero e cis, mas não me furto de elogiar a beleza de um mulherão que passe na rua. Sou mãe, irmã, filha, prima e tia, tudo ao mesmo tempo. Sou jornalista, tradutora e pesquisadora de uma empresa de HR Tech. Sou brasileira por origem, israelense por pertencimento e alemã por herança. Tudo junto. Não sou mais ou menos leal a nenhuma das minhas múltiplas identidades.
Adoro cultura trash como o festival Eurovision. Mas amo de paixão “Jogo da Amarelinha”, de Júlio Cortázar, e a ópera Carmen, de Bizet. Tenho obsessão pelo musical Hamilton, de Lin-Manuel Miranda e, ao mesmo tempo, uma paixão irracional pelo ator Jensen Ackles do seriado-pipoca Supernatural. Música pop e sinfonia. Batata-frita e salada. Sushi frito.
Várias ideias coexistem na vida de todos. Sou sionista – e por sionista, quero dizer apenas isso: acredito na autodeterminação do povo judeu em sua terra ancestral. E também acredito na autodeterminação do povo palestino. Dois pensamentos que nem contraditórios são, apesar de tanta gente ignorante achar que sim.
Não suporto Donald Trump e seus acólitos reacionários: machistas, racistas, adoradores de teorias conspiratórias, anti vacinas, anti-ciência, anti-tudo. Mas sim, sou grata a esse mesmo Trump por ter (espero) destruído a usina nuclear de Fordow, no Irã. Isso porque acredito profundamente que o programa nuclear da República Islâmica representa – ou representava, espero… – um perigo real não só a Israel, mas para o mundo todo.
O aiatolá Khamenei lidera uma seita fundamentalista, jihadista violenta, ditatorial, misógina, anti-LGBTQI+, anti-Ocidente e profundamente antissemita que existe há quatro décadas e que sequestrou a voz dos iranianos. Um dos objetivos dessa seita é a destruição física de Israel. Assim como Hitler desenhou a Solução Final para exterminar os judeus da Europa, o regime iraniano desenhou um plano nuclear para exterminar o Estado de maioria judaica do Oriente Médio. Mesma ideia. Mas não só Israel deveria ser exterminado: Estados Unidos, Inglaterra, França… Estão todos no cerne da doutrina da República Islâmica.
Então, era necessário agir. Mesmo com todos os riscos. E há muitos riscos, infelizmente.
Quanto a Netanyahu? Não suporto Benjamin Netanyahu e sua coalizão de extremistas religiosos, nacionalistas e racistas. Não acredito em uma palavra que sai de sua boca e, certamente, considero que tudo o que ele faz tem como objetivo primordial sua sobrevivência e legado políticos. Não importa para ele promover um golpe judicial contra a democracia israelense. Não importa para ele ter escolhido ministros extremistas que mancham a imagem de Israel e dos judeus. Vergonha.
Mas aprecio sua decisão – há muito esperada pela maioria dos israelenses – de parar de falar sobre a ameaça do programa nuclear do Irã – o que ele faz há 20 anos – e finalmente agir contra essa ameaça. E, ao que parece, de maneira planejada e coordenada com os Estados Unidos e outros países que preferem ficar nas sombras.
Da mesma forma, sigo a maioria dos israelenses no meu apoio a decisão de Netanyahu de reagir ao massacre de 7 de outubro de 2023 cometido pelo Hamas (como qualquer premiê israelense, aliás, faria). Era necessário enfrentar o Hamas e seus fanáticos anti-Israel e anti-Estado palestino (eles são contra os dois, que fique bem claro), que se escondem covardemente em túneis enquanto usam civis como escudos humanos. Choro por cada palestino inocente que morre nessa guerra insana por culpa de líderes que desprezam a vida. E por cada soldado israelense que cai, deixando viúvas, órfãos e pais com corações despedaçados.
Mas, ao mesmo tempo, odeio que Netanyahu se recuse a fazer um cessar-fogo agora, quando a guerra em Gaza virou um pântano de dilemas morais e uma bandeira nas mãos dos antissemitas do mundo, sempre prontos a culpar todos os judeus por tudo. Ainda há 50 reféns no cativeiro. Cada um deles é um universo em suspenso. Cada dia que passa sem resposta é uma falência moral.
Podemos sustentar muitos pensamentos ao mesmo tempo em nossas cabeças. Ser contra Trump e ainda acreditar no direito de Israel existir. Ser contra Netanyahu sem precisar fechar os olhos para a complexidade do Oriente Médio. Isso não é um bingo ideológico. Não é Fla x Flu. É a vida: contraditória, plural, cheia de zonas cinzentas.
Sugiro ao leitor libertar-se do pensamento de rebanho e fazer julgamentos baseados em valores reais pessoais, não é “o que o mestre mandou”. E sim: entender que é possível entreter pensamentos contraditórios na cabeça sem que ela exploda.
Esse texto não reflete necessariamente a opinião do Instituto Brasil-Israel.
(Foto: Flicker/MFAIsrael)
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