
Fim da cláusula da razoabilidade pode ser ponto de virada perigoso para a democracia de Israel
Revital PolegRevital Poleg
Um ponto de inflexão negativa no caráter democrático do Estado de Israel será registrado no próximo domingo, 23 de julho, quando acontecerá a votação final do projeto de lei que acaba com a cláusula da razoabilidade.
As altas temperaturas do verão israelense coincidem com a intensificação do protesto que tenta impedir que isso aconteça – e também com o aumento significativo de reservistas que não continuarão a servir se a lei for aprovada e com os chamados do presidente dos EUA, Biden, para que Benjamin Netanyahu suspenda imediatamente a corrida pela reforma legal. Ao que parece, no momento, Netanyahu não está atento a nenhuma dessas vozes. Ele escolheu um lado de forma clara e inequívoca e está conduzindo Israel vigorosamente para um ponto sem volta.
Desde o início da reforma, a intenção de Netanyahu e do Ministro da Justiça, Yariv Levin, de abolir a causa de razoabilidade ficou na pauta. Nos estágios iniciais, o tema não recebeu muita atenção, pois é um termo cuja compreensão exige um conhecimento mais profundo de seus significados jurídicos. Ao mesmo tempo, a coalizão tentou minimizar sua importância e afirmar que se tratava de uma questão menor, enquanto os opositores à anulação da cláusula garantiam que se tratava de parte central da revolução jurídica e de uma emenda que mudaria a cara de Israel. No momento que a discussão inicial sobre a questão começou na Comissão Constitucional, ficou claro o significado perigoso da mudança.
Em um artigo da profª Susie Navot, vice-presidente do Israel Democracy Institute e uma das principais juristas de Israel, ela afirma que apenas um governo que projeta decisões extremas e corruptas teme a cláusula da razoabilidade, que seus limites e aplicabilidade podem ser discutidos e que também há o que corrigir. No entanto, a legislação que o governo quer aprovar bloqueia completamente a autoridade do tribunal para invalidar uma decisão do primeiro-ministro, do governo, de um ministro ou de um funcionário eleito, mesmo que seja extremamente irracional, dando ao governo poder ilimitado.
A cláusula da razoabilidade é, de fato, uma ferramenta que permite que o tribunal assegure que o governo e as autoridades estão tomando decisões de forma apropriada. Já que o governo tem a obrigação de justificar suas decisões, de agir de forma razoável, com base em considerações relevantes e racionais, e de maneira equitativa e objetiva, sem considerações externas, o papel do tribunal é garantir que isso seja de fato cumprido. É importante observar, entretanto, que o tribunal utiliza a causa da razoabilidade apenas em casos excepcionais. Com a aprovação da lei neste domingo, esta opção será excluída do tribunal.
O processo excepcionalmente acelerado no qual o presidente do Comitê Constitucional, Simcha Rotman, conduziu o processo para concluir a legislação sobre o assunto, e a falta de nenhuma tentativa de chegar a um entendimento com a oposição, desperta grande preocupação e revela a enorme importância que a coalizão atribui ao cancelamento da cláusula e as verdadeiras intenções dos líderes da reforma, que, para exercer seu governo à sua maneira, se esforçam ao máximo para remover do caminho esse “obstáculo”. Isso é preocupante, muito preocupante.
Como essa mudança poderá se manifestar na prática? O governo poderá demitir quem quiser, como o conselheiro jurídico do governo (demanda que já foi levantada várias vezes pela coalizão e que agora pode ser concretizada), o procurador do estado, o chefe de polícia, o chefe do estado-maior das Forças de Defesa e, basicamente, qualquer pessoa indicada pelo governo e por qualquer motivo, sem a necessidade de nenhuma justificativa. Além disso, o governo também poderá nomear no lugar dessas pessoas, outras que não possuem qualificações profissionais e experiência apropriada, indivíduos ligados a autoridades eleitas e até mesmo pessoas cuja moralidade é duvidosa, e sem a necessidade de garantir a igualdade de oportunidades. O único critério para a nomeação será a lealdade à figura responsável.
Quando o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, ligou para Netanyahu no início desta semana, pediu que suspendesse de imediato a continuação do processo legislativo, com o intuito de evitar os graves danos à democracia israelense que essa medida causaria. Netanyahu ouviu, mas ignorou. Não só isso, mas quando os detalhes foram publicados no “New York Times”, por Thomas Friedman, o gabinete do primeiro-ministro negou que o assunto sequer surgiu na conversa. A Casa Branca, por sua vez, anunciou que o que foi publicado no artigo é efetivamente o que Biden falou a Netanyahu. Para quem está ciente do grau de intimidade e confiança que existe entre Israel e os EUA, é difícil e doloroso acreditar que chegamos a um ponto tão baixo.
A última vez que Biden pediu a Netanyahu para parar com a legislação foi depois que o primeiro-ministro demitiu o ministro da Defesa, Yoav Gallant, no final de março, e um enorme e espontâneo protesto que eclodiu em resposta a isso. No dia seguinte, Netanyahu anunciou a suspensão da legislação. Não foi o que aconteceu neste caso, e o significado é certamente preocupante.
São dias cruciais para o futuro da natureza do regime democrático de Israel. No momento em que este artigo está escrito, uma marcha de protesto contra a reforma está em andamento, na qual dezenas de milhares de pessoas que saíram de Tel Aviv na noite de terça-feira, estão caminhando até Jerusalém e planejam chegar ao Knesset no sábado à noite, horas antes da dramática votação sobre a causa da razoabilidade. Protestos adicionais estão ocorrendo em outros lugares em todo o país. O número de reservistas que anunciam que não continuarão a se voluntariar para o serviço militar está aumentando, passo apoiado até mesmo pelo ex-chefe do Serviço de Segurança Geral, Nadav Argaman, que apontou o primeiro-ministro como responsável pelo possível dano à competência da Força-Armada de Israel. O apelo de Benny Gantz, chefe do partido “Unidade Nacional”, para discutir a causa da razoabilidade, se for elaborado um esquema que declare que toda legislação futura será feita por consenso, foi rejeitado com desprezo pela coalizão.
A primeira fase do projeto de Netanyahu para mudar os fundamentos da democracia de Israel será realizada em poucos dias. A Fase II terá lugar assim que o Knesset voltar de seu recesso em meados de outubro. De acordo com o que observamos atualmente, Netanyahu não tem nenhuma intenção de abandonar esse caminho.
Foto: Wikimedia/Creative Commons
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