A guerra midiática por Babi Yar
04 mar 22

A guerra midiática por Babi Yar

Daniela Kresch

TEL AVIV – O presidente ucraniano Volodymyr Zelensky fez um apelo emocionado, em hebraico, aos israelenses e judeus de todo o mundo em sua conta no Telegram, há alguns dias. “Apelo a todos os judeus do mundo – vocês não veem o que está acontecendo aqui? Gritem contra o assassinato de civis. Gritem o grito da morte dos ucranianos!”, escreveu Zelensky.

O apelo aconteceu após um acontecimento dramático: um ataque russo nos arredores de Kiev (ou Kyiv, como os ucranianos chamam a cidade) teria destruído o novo monumento aos mortos em Babi Yar (ou Babyn Yar), que foi inaugurado há apenas dois anos, numa espécie de desrespeito crasso aos judeus mortos no Holocausto. Em Babi Yar, 33 mil judeus foram fuzilados em 1941 (há músicas famosas por aqui lembrando o massacre). No total, 150 mil pessoas foram assassinadas em Babi Yar, entre judeus, prisioneiros de guerra, comunistas e ciganos.

Zelensky, que é judeu, obviamente destacou a destruição do monumento para apelar aos corações dos judeus do mundo – e de Israel, para o qual já pediu ajuda militar e não recebeu: “Isso está além da humanidade”, acusou Zelensky. “O que acontecerá a seguir se até Babi Yar (foi atingido), que outros objetos ‘militares’, ‘bases da OTAN’ estão ameaçando a Rússia?”

O problema é que o monumento em Babi Yar não foi destruído, mesmo estando do lado de uma antena de TV que realmente foi atacada. Um jornalista israelense chamado Ron Ben-Yishai esteve lá e escreveu no jornal israelense Yedioth Aharonoth (Últimas Notícias):

“O Memorial Babi Yar não foi danificado”, escreveu Ben-Yishai. “Depois de percorrer todo o grande local, posso informar com certeza que nenhum monumento foi danificado e nenhuma bomba, míssil ou projétil atingiu a área. O golpe mais próximo de Babi Yar foi no complexo da torre de comunicações e televisão de Kiev, a cerca de 300 metros do novo monumento e a cerca de um quilômetro do antigo monumento às vítimas do massacre da Segunda Guerra Mundial”.

Não se sabe se Zelensky tinha ideia de que o monumento ainda estava de pé quando fez o apelo emocionado ao citar Babi Yar como alvo. Ao que parece, ele acreditou quando um assessor contou a ele sobre o ataque (o momento foi filmado). Em meio à confusão de um conflito como esse, é impossível saber se foi desinformação ou fake News. Alguém já disse que a primeira vítima de uma guerra é sempre a verdade.

Mas certamente esse tipo de caso é importante para moldar a opinião popular. Assim como Zelensky, o presidente russo Vladimir Putin também tem tentado usar o sentimento judaico em seu favor ao dizer que está falsamente lutando contra “o governo neonazista de Kiev” e que está realizando uma campanha de “desnazificação” na Ucrânia. Na prática, Putin está acusando um presidente judeu de nazista.

Por sua vez, Zelensky passou a destacar o fato de ser judeu apenas recentemente. Antes, não colocava isso como algo importante. Em 2019, ele riu disso (afinal, veio de uma carreira como comediante) ao dizer: “O fato de eu ser judeu mal chega ao número 20 na minha longa lista de falhas”. 

Agora, que precisa da ajuda de Israel e, principalmente, precisa emocionar o mundo para que se coloque a seu favor, não poderia deixar de usar o ataque a Babi Yar (que não ocorreu como todos nós havíamos pensado) como parte de seu marketing. 

Ele também afirmou que Uman, outra cidade ucraniana, também foi danificada. Uman é um local onde, anualmente, milhares de judeus hassidim e ultraortodoxos visitam por ser a cidade onde está enterrado o Rebbe Nachman of Breslov, bisneto do Baal Shem Tov, que reviveu o movimento hassídico combinando os segredos esotéricos do judaísmo (a Cabala) com a Torá.

“No primeiro dia da guerra, Uman foi brutalmente bombardeada, onde centenas de milhares de judeus vêm todos os anos para rezar”, disse Zelensky, mesmo que as bombas não tenham chegado perto do túmulo de Rebbe Nachman.

Numa situação como essa, é difícil condenar Volodymyr Zelensky por usar de todas as armas midiáticas a seu dispor. Muitos fariam o mesmo, dadas as circunstâncias trágicas em que os ucranianos se encontram. Zelensky já está sendo visto por boa parte do Ocidente como herói, um underdog que está lutando com poucos recursos e sozinho contra o grande exército russo. O monumento em Babi Yar e o túmulo de Rebbe Nachman não foram destruídos, mas poderiam ter sido. Há realmente bombas e mísseis atingindo locais civis na Ucrânia. E realmente Zelensky está recebendo mais apoio emocional do que prático de seus supostos aliados no mundo.

Como um ex-ator e comediante, Zelensky sabe falar ao público. A pergunta é se isso vai ser o suficiente para estancar a invasão furiosa de Putin.

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