
O idioma bolsonarista
Milleni FreitasEm uma obra clássica de Albert O. Hirschman, intitulada A Retórica da Intransigência, o autor classifica e categoriza algumas estruturas presentes nos discursos conservadores, sendo elas: a retórica da ameaça, da futilidade e da perversão. De maneira resumida, a primeira diz respeito à ameaça que os costumes tradicionais sofrem quando há tentativas de mudança no sistema imposto, ou seja, como se a própria mudança fosse uma ameaça em si e à própria vida e seu funcionamento. A segunda afirma que são fúteis e inúteis as inúmeras tentativas de mudanças, que tendem a culminar em fracassos retumbantes. O discurso do conformismo é uma das soluções para essa retórica. Por fim, a terceira – e ao meu ver a mais complexa – é a da perversão, que sustenta a ideia de que uma ação que desafie o sistema imposto, de alguma forma, traria um resultado oposto ao desejado. A ideia é de que não haveria outra possibilidade senão o fracasso e também as consequências catastróficas e inversas ao que os movimentos propunham. Recuperar essa obra de Hirschman parece ser fundamental para entender no nível da linguagem, da retórica e da narrativa uma estrutura identificada no discurso de Jair Bolsonaro e seus seguidores, que é a negação.
Durante a pandemia do Covid-19, a expressão latina memento mori (a lembrança que somos mortais e temporários) metaforiza bem a angústia da perda e seu risco iminente que acometeu grande parte da população brasileira. No terreno bolsonarista, porém, o medo foi solapado pelo discurso da ausência do medo. A defesa do uso da Cloroquina, contraindicado pela Organização Mundial da Saúde, a qualificação da pandemia como uma “gripezinha” ou “histeria” e a política contrária ao isolamento social evidenciam uma estrutura de linguagem de negação. Nega-se sua gravidade, sua existência ameaçadora e até o próprio medo. Vale notar que a operação de negação ocorre de maneira inversa e diretamente proporcional: quanto maior o caos social e quanto mais medo se tem, menos dizem que acreditam.
Assim, a negação se manifesta na linguagem por uma segurança ilusória que os apresenta como imunizados, seja a partir da proteção divina, de um líder ou mesmo do próprio corpo, que não sucumbiria ao vírus por conta de algum histórico de atleta. Ao negarem o próprio medo, os bolsonaristas (em consonância com Bolsonaro), negam a si mesmos (sua angústia) e o outro (o vírus).
A tentativa de resolver a atual crise por meio da palavra, mais especificamente pelo discurso da negação, teve outros momentos emblemáticos. Aqui mencionarei dois exemplos: o primeiro sendo a negação do Holocausto, em que não se nega necessariamente a existência do genocídio, mas a responsabilidade da extrema-direita, ao afirmar que ele pertence à ideologia da esquerda, como o fez Jair Bolsonaro em seu discurso em frente ao Yad Vashem, em Jerusalém. Aqui há negacionismo, que é um tipo de revisionismo histórico particular do Holocausto e flerta com a retórica da negação.
O segundo é a negação do racismo. Bolsonaristas comumente dizem que pouco importa lembrar as mazelas e a limpeza étnica que os negros sofreram e sofrem, pois recordá-las no dia da Consciência Negra é, para eles, o que produz o próprio racismo. A justificativa para essa perversão da lógica é de que a Consciência Negra isola a experiência da negritude às demais experiências. Esse pensamento apareceu, por exemplo, em um texto produzido pela Fundação Cultural Palmares – que tem grande importância institucional e é hoje dirigida por um aliado do atual presidente. De novo, a força da palavra criadora, tal como a metáfora da palavra divina que produz o mundo, se inventa a partir da negação. A crença de que não falar sobre o racismo faz com que ele desapareça, tem a mesma raiz de outros momentos em que por meio da linguagem da negação, cria-se a verdade, os fatos e a história.
Por fim, para a extrema-direita brasileira, além de se adequar às retóricas examinadas por Hirschaman (Ameaça, Futilidade e Perversão), incorpora também a negação. As variáveis que convergiram para esse processo são inúmeras e recebem atualizações cotidianas, mas posso mencionar aqui pelo menos duas que encontramos nas argumentações dos bolsonaristas, que são os “gurus” da extrema direita: Olavo de Carvalho e Leandro Narloch, com sua famosa versão brasileira do Guia Politicamente Incorreto. Essas construções de linguagem e de maneira de olhar o mundo são baseadas em falseamentos e distorções. Ou seja, as negações dos fatos e da história determinam um discurso que nega a realidade concreta e se coloca como válida independente de evidências ou da profundidade nos temas apresentados.
Artigos Relacionados

Que reforma judicial Israel realmente precisa?
9 de agosto de 2023
Daniela Kresch TEL AVIV – Israel passa por um momento turbulento. A não ser que você viva isolado no deserto, saberá que o atual governo Benjamin Netanyahu está tentando aprovar uma ampla reforma judicial desde que tomou posse, no finalzinho de dezembro de 2022. Na verdade, a reforma foi anunciada alguns dias depois, no começo […]


Um ano do 7 de outubro: O fim da inocência
7 de outubro de 2024
Daniela Kresch TEL AVIV – Há um ano, a minha vida mudou, bem como a vida de todos os israelenses e da diáspora judaica. Nunca pensei que a minha geração veria algo assim, tão terrível e histórico. Um dia que será lembrado com cerimônias fúnebres, memoriais, minutos de silêncio e músicas de enterro. Aqui em […]


A ansiedade anti-Israel da imprensa internacional
18 de outubro de 2023
Daniela Kresch Pois é, o conflito entre israelenses e palestinos está novamente nas manchetes da mídia de praticamente todo o mundo depois do horripilante ataque terrorista do Hamas contra milhares de israelenses no dia 7 de outubro de 2023 – o maior atentado desde o 11 de setembro de 2001 em Nova York. Voltou como […]
